Crônicas de Bicicletas - Circuito de Corridas da Caixa
É um blog de corridas mas seu autor escreve crônicas sobre bicicletas. Torna-se inevitável que em algum momento estes assuntos venham à tona numa única postagem, ainda que não seja o relato de um triathlon. A história é longa e durante muito tempo, relutei em transcrevê-la. Passado tanto tempo, porém, as sensações daquele dia já não são tão traumáticas. É hora de fazê-lo antes que elas se percam por completo.
Na crônica anterior, mencionei que a Caloi Snake me levava para as provas no Eixo Monumental. À época, em 2009, as provas de 10 km da Esplanada dos Ministérios ainda eram incluídas no calendário da +Equipe Lo-Rã. Era o meu melhor ano desde que começara a correr. Tinha completado minha primeira maratona no Rio de Janeiro, em junho, com um tempo até razoável, 3:31:10. Passado o tempo de recuperação exigido por uma prova desta magnitude, era chegada a hora de focar em outros objetivos. E o objetivo que se apresentava natural era tentar baixar o tempo nos 10 km.
Em setembro tinha corrido a Etapa Primavera do Circuito das Estações Adidas em 41'31". Em outubro, evolui para 39'17" na Corrida do Gama e, embora, não fosse uma prova de 10 km cravados, o tempo nos 9.700m projetava 40'35" numa prova com a distância oficial. Estava otimista que conseguiria baixar dos 40 minutos ainda naquele ano. Em novembro, havia duas corridas em fins de semanas consecutivos que pareciam feitas sob medida para este objetivo. O Circuito de Corridas da Caixa no dia 22 e a Etapa Verão do Circuito das Estações Adidas no dia 27. Embora meu treinador não goste que acumulemos muitas competições num mês, muito menos em fins de semana seguidos, combinamos que eu me inscreveria em ambas. Era uma forma de tirar a responsabilidade. Correria a primeira com a certeza que caso não conseguisse um bom tempo, teria uma segunda oportunidade no domingo seguinte.
Deixei a bicicleta na tenda da equipe e fui me aquecer com o Dudu e o Feitosa. Era um domingo de sol, a temperatura estava agradável, Laurent me acompanharia para marcar meu ritmo. Como não poderia estar confiante em fazer uma boa corrida?
Me posicionei o mais na frente que consegui e aguardei a largada. Conforme o combinado, na Catedral Laurent me encontrou e começamos a correr lado a lado. Junto com o Feitosa, que também corria na pipoca, descemos a Esplanada em direção à Praça dos Três Poderes.
Não há absolutamente nenhum percurso plano em Brasília. O Distrito Federal é plano se considerarmos que não há nenhuma montanha na região. Ao olharmos mais de perto, porém, qualquer corridinha de 10 km vai resultar nuns 100m de desnível. Não é à toa que a Golden Run da Asics tem em Brasília sua meia maratona mais rápida, usando o desnível a seu favor. Sai lá de cima, chega lá embaixo.
O percurso da Esplanada dos Ministérios, utilizado por um monte de provas diferentes tem uma peculiaridade. Desce o tempo todo na primeira metade, sobe o tempo todo na volta. Por causa disso, uma corrida tem que ser bem pensada. Um pouco de tempo tem que ser ganho na ida para compensar o que será inevitavelmente perdido na volta. Evidentemente, essa quantidade tem que ser bem dosada para não arruinar completamente a prova.
Analisando agora, os primeiros 6 kms foram fantásticos: 4:00, 3:48, 3:47, 3:52, 3:53, 3:57. O Strava indica 5 km em 19'10", meu melhor tempo para a distância fora da pista. Na volta porém, comecei a ratear. 4:11 no quilômetro 7. Ainda tinha 30 segundos para perder em 3 quilômetros mas meu limite já havia sido ultrapassado. Meus óculos escuros tinham embaçado e eu os havia colocado sobre a cabeça. Ao tirar o boné para jogar água na cabeça, esqueci deste detalhe e os óculos foram parar no chão. Na ânsia para acabar com o sofrimento o mais rapidamente quanto possível, deixei-os para trás. Hoje percebo que foi neste exato momento que a toalha devia ter sido jogada. Deveria ter deixado para a próxima. Mas o treinador estava do meu lado, correndo para me ajudar e eu não queria decepcioná-lo. Uma garota apanhou o óculos e entregou ao Laurent que tinha voltado para buscá-lo.
Continuei a me arrastar. No quilômetro 8 eu já estava na conta do chá. Ou corria 4'00"/km ou chegaria acima dos 40'. Depois de subir o Congresso, comecei a andar. Laurent me pediu para diminuir o ritmo mas não parar de correr. Não lhe dei atenção e acelerei ao máximo que conseguia, entre 4'10" e 4'20". Comecei a delirar. Virei para o Laurent e falei para ele:
- Não consigo mais. Vai lá e termina a sua prova. - esquecendo por completo que ele nem inscrito estava e seu objetivo, naquele dia, era somente o de me ajudar.
Aí entramos no quilômetro 9. Normalmente é neste ponto que o cansaço acaba e o último gás aparece do nada. Neste dia, isto não aconteceu. Voltei a caminhar. Aí, faltando uns 500m, disparei em direção à chegada. Um fotógrafo que cobria a prova capturou este instante - e meu estado deplorável - na foto abaixo.
Flash: alguém passa o braço pelos meus ombros e me ampara. Mais tarde me falam que foi o +Colombelli e a Sylvia.
Flash: estou deitado de lado numa maca. Abaixo o short e mijo ali mesmo, na frente da multidão que está terminando a corrida.
Escuridão...
...abro os olhos. Percebo o teto branco. Me sinto desorientado, como nas vezes que durmo à tarde e acordo sem saber se ainda é hoje ou já é amanhã. A consciência vai voltando. Aos poucos. Bem aos poucos. Percebo que estou deitado e há uma agulha no meu braço. O único rosto conhecido era o do Laurent. Tento me sentar na maca apesar dos protestos da mulher de branco. Volto a me deitar.
- O que foi que eu fiz?
Minha maior preocupação, no momento, é chegar inteiro no almoço de domingo, um dos poucos compromissos que ainda são seguidos à risca àquela altura do casamento.
- Eu vou morrer?
- Não!! Claro que não - exclama, meio sorrindo a mulher de branco.
- Quer que eu ligue para alguém? - pergunta Laurent.
Hesito. Não quero que a Ana saiba. Tenho certeza que ela vai encher meu saco pelo resto da vida:
- Tá vendo? Não disse que você está exagerando? Quer correr? Corre. Mas precisa correr tão rápido?
Não consigo me lembrar de mais ninguém. Ela e o Henrique são minha única família em Brasília.
- Liga para a Ana. Ela vai me matar.
Passo meu celular para o Laurent que faz a ligação. Ele relata por alto a situação, tentando tranquilizá-la.
A mulher de branco sugere que eu vá caminhar lá fora. A agulha do soro é retirado do meu braço. Laurent me ajuda a descer da ambulância. As panturrilhas estão rijas e sinto uma dor lancinante a cada passo que dou. Acho que tive câimbras. Me colocam sentado próximo à ambulância. Àquela altura, Marizete era um dos rostos conhecidos. Havia outros, curiosos idiotas que tinham vindo fotografar o idiota que tinha desmaiado na corrida. Meu olhar está perdido no horizonte. A confusão mental não cede e me pergunto se há algum risco de sequelas que torne esse estado permanente. Lembro que sou coordenador de uma equipe no trabalho. Não vou ter condições de coordenar mais porra nenhuma. Vou acabar perdendo meu cargo em comissão.
A Ana chega e trás Henrique consigo. Olho para ela, constrangido, como uma criança que desobedece a mãe e é pego na situação que ela dizia que aconteceria. Estou tão delirante que digo que a amo. Esse tipo de gentileza já tinha ficado no passado há algum tempo. Nós mal nos tolerávamos, então.
- Papai está bem. - digo para o Henrique e percebo que a língua está enrolada, como se estivesse bêbado. Aliás, toda a situação me remete a um porre da época de adolescente. Embora nunca tenha tido um, a impressão que tenho é que estou fazendo o caminho inverso de um coma alcoólico, saindo de um estado de inconsciência pra um estado de consciência. Era como se o filme estivesse sendo tocado de trás para frente.
As pessoas ao meu lado estão confabulando mas eu me mantenho alheio. Ouço alguém comentar:
- E a bicicleta? Ele veio de bicicleta.
- Eu levo ela. - Laurent se oferece.
Percebo, com certo desconforto, que estão me levando amparado para a tenda da equipe. Preferia que não me vissem naquele estado mas, àquela altura, pouco importava. Já estava notório que alguma coisa tinha acontecido comigo e que eu tinha ido parar na ambulância. Conseguia identificar preocupação no olhar das pessoas e tentava me esquivar, respondendo apenas com movimentos de cabeça, para que não percebessem o quanto era difícil falar.
Entro no carro da Marizete. Olho a paisagem e reparo nos letreiros dos prédios que abrigam os órgãos públicos na Esplanada dos Ministérios. Um deles diz. AGU. Eu sei o significado de AGU mas não consigo me lembrar qual seja ele.
Passando pela lateral do Museu da República, vi Laurent na minha bicicleta. Ficamos esperando na portaria do prédio. Marizete achava o episódio tinha sido sério demais para terminar ali. Convenceu-nos a ir ao hospital e se ofereceu para nos levar. Eu subi, a contragosto, para tomar banho e ser conduzido para o Hospital do Lago Sul. A confusão mental ia diminuindo aos poucos.
Laurent perguntou, em tom de pilhéria, se eu gostaria de dirigir até lá. Ao menos conseguia identificar ironia. Já era um ponto positivo.
Passei pela triagem e fiquei aguardando a consulta. Descrevi a situação e disse que eu havia desmaiado. Laurent estava me acompanhando e interveio:
- Ele não desmaiou. Ele estava consciente o tempo todo.
A médica levantou a hipótese de ter sido uma desidratação e ele interveio novamente:
- Estamos acostumados a correr esta distância. A corrida demorou 40 minutos. Não teria dado tempo de desidratar...
A doutora disse que não achava ser nada demais mas prescreveu uma bateria de exames de sangue, para desencargo de consciência. Não havia mais necessidade de continuar prendendo Laurent e Marizete. Nos despedimos deles e ficamos aguardando um par de horas pelo resultado dos exame.
Levei os resultados para a doutora. Ela analisou e perguntou se eu estava gripado e se era verdade que eu realmente não estava sentindo nada de diferente antes do incidente. Eu realmente não havia mentido. Não me lembrava de já ter me sentido tão bem antes de uma corrida.
- O número de leucócitos está indicando que você está com uma infecção, mas se você está dizendo que não está sentindo nada... O exame deve estar errado... Vou pedir pra você repetir.
Repito o exame e são mais duas horas assistindo o Domingão do Faustão numa televisão minúscula, antes que o novo resultado fosse divulgado. Nova consulta, mesmo resultado. A doutora não vai me dar alta antes de investigar a origem desta alteração. Agora pede um Raio X de face. Para alívio geral, ela consegue diagnosticar uma sinusite. Prescreve uns antibióticos e me libera para voltar para casa, com a recomendação para ficar uma semana afastado das atividades físicas.
Fui trabalhar normalmente no dia seguinte. Os sintomas desapareceram por completo depois de uma noite de repouso. Na terça-feira, apesar da cara de reprovação da Ana quando voltei, trotei como se nada tivesse acontecido, pace de 4'56"/km.
Laurent me ligou para saber notícias, e pediu para que eu fosse à pista na quarta-feira para conversarmos. Ele estava preocupado que eu parasse de correr.
- Ainda mais uma pessoa com o histórico que você tem. Se você parar de correr, pode voltar a ganhar peso, entrar em depressão...
- Não se preocupe Laurent. Eu não vou parar de correr.
- Eu vi que você ficou muito assustado. Perguntou se ia morrer...
- Disso eu me lembro. Mas já passou. Ontem mesmo já saí para trotar.
- Ah, é? Quer fazer os tiros de 300? Na planilha tá 15... Faz menos... Uns 10...
- Ok. Vamos lá.
A pedidos, fui me consultar com um neurologista para ver se havia a possibilidade de eu ter ficado com alguma sequela. Aceitei imediatamente. Noutra ocasião, ela havia insistido tanto para que fosse num nutricionista, na esperança que ele diagnosticasse algum distúrbio alimentar que justificasse ter perdido tanto peso em tão pouco tempo, que desta vez não quis me aborrecer. Cheguei ao ponto de fazer uma tomografia com contraste cujo laudo não indicou nada. Na consulta de retorno, ao ver todo o mundo passando na minha frente, interpelei sua assistente que me informou:
- É que o doutor respeita as prioridades.
- A gente tá num hospital. Todo o mundo aqui vai ser prioridade. Se ele respeitasse o horário das consultas, não tinha que respeitar as prioridades.
Conclusões:
Foi minha última corrida do ano. O ano seguinte foi um ano bastante movimentado. Tanto no âmbito pessoal quanto no das corridas. Me separei. Tinha sido muito bom enquanto foi bom. Tinha sido muito ruim quando se tornou ruim. Seguimos nossas vidas embora tenhamos um compromisso um com o outro que vai durar para sempre: um filho. O maior compromisso que duas pessoas podem assumir entre si. Indissolúvel.
Para curar a ressaca, fui à Grécia correr a edição da Maratona que comemorou 2.500 anos da corrida original e aproveitei para engatar um tour na Itália.
Não foi a única maratona. Em julho, corri novamente a Maratona do Rio em 3h16'10". Antes disso, tinha feito a Corrida do Fogo, em Brasília, para 40'22". Na trave.
Em outubro, fiz o Circuito das Estações Adidas no Aterro do Flamengo. 39'26". Lembro-me de ter ligado pro Laurent, logo após a prova, para dar-lhe a notícia:
- Laurent! Agora sou um sub 40!
Foi um ano em que me dediquei muito. Foi um ano que o Laurent se dedicou muito a mim. Antes de embarcar para a Maratona de Atenas, ele me chamou num canto da pista da PM, onde treinávamos então, e me disse para ir lá para aproveitar. O objetivo do ano já tinha sido atingido.
- O tempo que você fez na Maratona do Rio prova que você é atleta. Mas prova também que eu sou treinador.
E lembrou da fatídica corrida que, para mim, já era página virada. Memória arquivada.
- Depois do que aconteceu contigo naquela corrida, ouvi muita gente falando besteira. Falando que eu quase tinha te matado. Que tinha te forçado.
O que aconteceu naquele dia foi meramente uma fatalidade. Não foi sinusite. Já tive sinusites suficientes para saber que elas não são assintomáticas. Sinusite sem dor de cabeça? Sem produção infinita de meleca? Impossível. O diagnóstico foi somente a forma que a médica que me atendeu encontrou para me despachar sem ter que dizer "eu não sei o que você tem", um diagnóstico muito mais comum do que se imagina.
Não foi desidratação ou insolação. Não estava quente ou seco, eu me lembro de ter pego água durante a corrida. Não foi esforço em excesso. Eu estava preparado, descansado e acostumado a correr naquele ritmo. Certamente estava correndo no limite mas, de forma alguma, estava correndo acima dele.
Tampouco a culpa pode ser atribuída ao Laurent, como circulou no meio das corridas de rua de Brasília. Não foi culpa dele porque não foi culpa de ninguém. Simplesmente aconteceu.
Ironicamente, o incidente nos aproximou. Laurent e Marizete foram meus padrinhos do meu segundo casamento e, no convite, escrevi a seguinte mensagem:
"Laurent,
Desde que vim morar em Brasília, você esteve presente em todos os momentos marcantes que vivi, a ponto da minha história nesta cidade se confundir com a história de nossa amizade. Obrigado".
Na crônica anterior, mencionei que a Caloi Snake me levava para as provas no Eixo Monumental. À época, em 2009, as provas de 10 km da Esplanada dos Ministérios ainda eram incluídas no calendário da +Equipe Lo-Rã. Era o meu melhor ano desde que começara a correr. Tinha completado minha primeira maratona no Rio de Janeiro, em junho, com um tempo até razoável, 3:31:10. Passado o tempo de recuperação exigido por uma prova desta magnitude, era chegada a hora de focar em outros objetivos. E o objetivo que se apresentava natural era tentar baixar o tempo nos 10 km.
Em setembro tinha corrido a Etapa Primavera do Circuito das Estações Adidas em 41'31". Em outubro, evolui para 39'17" na Corrida do Gama e, embora, não fosse uma prova de 10 km cravados, o tempo nos 9.700m projetava 40'35" numa prova com a distância oficial. Estava otimista que conseguiria baixar dos 40 minutos ainda naquele ano. Em novembro, havia duas corridas em fins de semanas consecutivos que pareciam feitas sob medida para este objetivo. O Circuito de Corridas da Caixa no dia 22 e a Etapa Verão do Circuito das Estações Adidas no dia 27. Embora meu treinador não goste que acumulemos muitas competições num mês, muito menos em fins de semana seguidos, combinamos que eu me inscreveria em ambas. Era uma forma de tirar a responsabilidade. Correria a primeira com a certeza que caso não conseguisse um bom tempo, teria uma segunda oportunidade no domingo seguinte.
Deixei a bicicleta na tenda da equipe e fui me aquecer com o Dudu e o Feitosa. Era um domingo de sol, a temperatura estava agradável, Laurent me acompanharia para marcar meu ritmo. Como não poderia estar confiante em fazer uma boa corrida?
Me posicionei o mais na frente que consegui e aguardei a largada. Conforme o combinado, na Catedral Laurent me encontrou e começamos a correr lado a lado. Junto com o Feitosa, que também corria na pipoca, descemos a Esplanada em direção à Praça dos Três Poderes.
Não há absolutamente nenhum percurso plano em Brasília. O Distrito Federal é plano se considerarmos que não há nenhuma montanha na região. Ao olharmos mais de perto, porém, qualquer corridinha de 10 km vai resultar nuns 100m de desnível. Não é à toa que a Golden Run da Asics tem em Brasília sua meia maratona mais rápida, usando o desnível a seu favor. Sai lá de cima, chega lá embaixo.
O percurso da Esplanada dos Ministérios, utilizado por um monte de provas diferentes tem uma peculiaridade. Desce o tempo todo na primeira metade, sobe o tempo todo na volta. Por causa disso, uma corrida tem que ser bem pensada. Um pouco de tempo tem que ser ganho na ida para compensar o que será inevitavelmente perdido na volta. Evidentemente, essa quantidade tem que ser bem dosada para não arruinar completamente a prova.
Analisando agora, os primeiros 6 kms foram fantásticos: 4:00, 3:48, 3:47, 3:52, 3:53, 3:57. O Strava indica 5 km em 19'10", meu melhor tempo para a distância fora da pista. Na volta porém, comecei a ratear. 4:11 no quilômetro 7. Ainda tinha 30 segundos para perder em 3 quilômetros mas meu limite já havia sido ultrapassado. Meus óculos escuros tinham embaçado e eu os havia colocado sobre a cabeça. Ao tirar o boné para jogar água na cabeça, esqueci deste detalhe e os óculos foram parar no chão. Na ânsia para acabar com o sofrimento o mais rapidamente quanto possível, deixei-os para trás. Hoje percebo que foi neste exato momento que a toalha devia ter sido jogada. Deveria ter deixado para a próxima. Mas o treinador estava do meu lado, correndo para me ajudar e eu não queria decepcioná-lo. Uma garota apanhou o óculos e entregou ao Laurent que tinha voltado para buscá-lo.
Continuei a me arrastar. No quilômetro 8 eu já estava na conta do chá. Ou corria 4'00"/km ou chegaria acima dos 40'. Depois de subir o Congresso, comecei a andar. Laurent me pediu para diminuir o ritmo mas não parar de correr. Não lhe dei atenção e acelerei ao máximo que conseguia, entre 4'10" e 4'20". Comecei a delirar. Virei para o Laurent e falei para ele:
- Não consigo mais. Vai lá e termina a sua prova. - esquecendo por completo que ele nem inscrito estava e seu objetivo, naquele dia, era somente o de me ajudar.
Aí entramos no quilômetro 9. Normalmente é neste ponto que o cansaço acaba e o último gás aparece do nada. Neste dia, isto não aconteceu. Voltei a caminhar. Aí, faltando uns 500m, disparei em direção à chegada. Um fotógrafo que cobria a prova capturou este instante - e meu estado deplorável - na foto abaixo.
Flash: alguém passa o braço pelos meus ombros e me ampara. Mais tarde me falam que foi o +Colombelli e a Sylvia.
Flash: estou deitado de lado numa maca. Abaixo o short e mijo ali mesmo, na frente da multidão que está terminando a corrida.
Escuridão...
...abro os olhos. Percebo o teto branco. Me sinto desorientado, como nas vezes que durmo à tarde e acordo sem saber se ainda é hoje ou já é amanhã. A consciência vai voltando. Aos poucos. Bem aos poucos. Percebo que estou deitado e há uma agulha no meu braço. O único rosto conhecido era o do Laurent. Tento me sentar na maca apesar dos protestos da mulher de branco. Volto a me deitar.
- O que foi que eu fiz?
Minha maior preocupação, no momento, é chegar inteiro no almoço de domingo, um dos poucos compromissos que ainda são seguidos à risca àquela altura do casamento.
- Eu vou morrer?
- Não!! Claro que não - exclama, meio sorrindo a mulher de branco.
- Quer que eu ligue para alguém? - pergunta Laurent.
Hesito. Não quero que a Ana saiba. Tenho certeza que ela vai encher meu saco pelo resto da vida:
- Tá vendo? Não disse que você está exagerando? Quer correr? Corre. Mas precisa correr tão rápido?
Não consigo me lembrar de mais ninguém. Ela e o Henrique são minha única família em Brasília.
- Liga para a Ana. Ela vai me matar.
Passo meu celular para o Laurent que faz a ligação. Ele relata por alto a situação, tentando tranquilizá-la.
A mulher de branco sugere que eu vá caminhar lá fora. A agulha do soro é retirado do meu braço. Laurent me ajuda a descer da ambulância. As panturrilhas estão rijas e sinto uma dor lancinante a cada passo que dou. Acho que tive câimbras. Me colocam sentado próximo à ambulância. Àquela altura, Marizete era um dos rostos conhecidos. Havia outros, curiosos idiotas que tinham vindo fotografar o idiota que tinha desmaiado na corrida. Meu olhar está perdido no horizonte. A confusão mental não cede e me pergunto se há algum risco de sequelas que torne esse estado permanente. Lembro que sou coordenador de uma equipe no trabalho. Não vou ter condições de coordenar mais porra nenhuma. Vou acabar perdendo meu cargo em comissão.
A Ana chega e trás Henrique consigo. Olho para ela, constrangido, como uma criança que desobedece a mãe e é pego na situação que ela dizia que aconteceria. Estou tão delirante que digo que a amo. Esse tipo de gentileza já tinha ficado no passado há algum tempo. Nós mal nos tolerávamos, então.
- Papai está bem. - digo para o Henrique e percebo que a língua está enrolada, como se estivesse bêbado. Aliás, toda a situação me remete a um porre da época de adolescente. Embora nunca tenha tido um, a impressão que tenho é que estou fazendo o caminho inverso de um coma alcoólico, saindo de um estado de inconsciência pra um estado de consciência. Era como se o filme estivesse sendo tocado de trás para frente.
As pessoas ao meu lado estão confabulando mas eu me mantenho alheio. Ouço alguém comentar:
- E a bicicleta? Ele veio de bicicleta.
- Eu levo ela. - Laurent se oferece.
Percebo, com certo desconforto, que estão me levando amparado para a tenda da equipe. Preferia que não me vissem naquele estado mas, àquela altura, pouco importava. Já estava notório que alguma coisa tinha acontecido comigo e que eu tinha ido parar na ambulância. Conseguia identificar preocupação no olhar das pessoas e tentava me esquivar, respondendo apenas com movimentos de cabeça, para que não percebessem o quanto era difícil falar.
Entro no carro da Marizete. Olho a paisagem e reparo nos letreiros dos prédios que abrigam os órgãos públicos na Esplanada dos Ministérios. Um deles diz. AGU. Eu sei o significado de AGU mas não consigo me lembrar qual seja ele.
Passando pela lateral do Museu da República, vi Laurent na minha bicicleta. Ficamos esperando na portaria do prédio. Marizete achava o episódio tinha sido sério demais para terminar ali. Convenceu-nos a ir ao hospital e se ofereceu para nos levar. Eu subi, a contragosto, para tomar banho e ser conduzido para o Hospital do Lago Sul. A confusão mental ia diminuindo aos poucos.
Laurent perguntou, em tom de pilhéria, se eu gostaria de dirigir até lá. Ao menos conseguia identificar ironia. Já era um ponto positivo.
Passei pela triagem e fiquei aguardando a consulta. Descrevi a situação e disse que eu havia desmaiado. Laurent estava me acompanhando e interveio:
- Ele não desmaiou. Ele estava consciente o tempo todo.
A médica levantou a hipótese de ter sido uma desidratação e ele interveio novamente:
- Estamos acostumados a correr esta distância. A corrida demorou 40 minutos. Não teria dado tempo de desidratar...
A doutora disse que não achava ser nada demais mas prescreveu uma bateria de exames de sangue, para desencargo de consciência. Não havia mais necessidade de continuar prendendo Laurent e Marizete. Nos despedimos deles e ficamos aguardando um par de horas pelo resultado dos exame.
Levei os resultados para a doutora. Ela analisou e perguntou se eu estava gripado e se era verdade que eu realmente não estava sentindo nada de diferente antes do incidente. Eu realmente não havia mentido. Não me lembrava de já ter me sentido tão bem antes de uma corrida.
- O número de leucócitos está indicando que você está com uma infecção, mas se você está dizendo que não está sentindo nada... O exame deve estar errado... Vou pedir pra você repetir.
Repito o exame e são mais duas horas assistindo o Domingão do Faustão numa televisão minúscula, antes que o novo resultado fosse divulgado. Nova consulta, mesmo resultado. A doutora não vai me dar alta antes de investigar a origem desta alteração. Agora pede um Raio X de face. Para alívio geral, ela consegue diagnosticar uma sinusite. Prescreve uns antibióticos e me libera para voltar para casa, com a recomendação para ficar uma semana afastado das atividades físicas.
Fui trabalhar normalmente no dia seguinte. Os sintomas desapareceram por completo depois de uma noite de repouso. Na terça-feira, apesar da cara de reprovação da Ana quando voltei, trotei como se nada tivesse acontecido, pace de 4'56"/km.
Laurent me ligou para saber notícias, e pediu para que eu fosse à pista na quarta-feira para conversarmos. Ele estava preocupado que eu parasse de correr.
- Ainda mais uma pessoa com o histórico que você tem. Se você parar de correr, pode voltar a ganhar peso, entrar em depressão...
- Não se preocupe Laurent. Eu não vou parar de correr.
- Eu vi que você ficou muito assustado. Perguntou se ia morrer...
- Disso eu me lembro. Mas já passou. Ontem mesmo já saí para trotar.
- Ah, é? Quer fazer os tiros de 300? Na planilha tá 15... Faz menos... Uns 10...
- Ok. Vamos lá.
A pedidos, fui me consultar com um neurologista para ver se havia a possibilidade de eu ter ficado com alguma sequela. Aceitei imediatamente. Noutra ocasião, ela havia insistido tanto para que fosse num nutricionista, na esperança que ele diagnosticasse algum distúrbio alimentar que justificasse ter perdido tanto peso em tão pouco tempo, que desta vez não quis me aborrecer. Cheguei ao ponto de fazer uma tomografia com contraste cujo laudo não indicou nada. Na consulta de retorno, ao ver todo o mundo passando na minha frente, interpelei sua assistente que me informou:
- É que o doutor respeita as prioridades.
- A gente tá num hospital. Todo o mundo aqui vai ser prioridade. Se ele respeitasse o horário das consultas, não tinha que respeitar as prioridades.
Conclusões:
Foi minha última corrida do ano. O ano seguinte foi um ano bastante movimentado. Tanto no âmbito pessoal quanto no das corridas. Me separei. Tinha sido muito bom enquanto foi bom. Tinha sido muito ruim quando se tornou ruim. Seguimos nossas vidas embora tenhamos um compromisso um com o outro que vai durar para sempre: um filho. O maior compromisso que duas pessoas podem assumir entre si. Indissolúvel.
Para curar a ressaca, fui à Grécia correr a edição da Maratona que comemorou 2.500 anos da corrida original e aproveitei para engatar um tour na Itália.
Não foi a única maratona. Em julho, corri novamente a Maratona do Rio em 3h16'10". Antes disso, tinha feito a Corrida do Fogo, em Brasília, para 40'22". Na trave.
Em outubro, fiz o Circuito das Estações Adidas no Aterro do Flamengo. 39'26". Lembro-me de ter ligado pro Laurent, logo após a prova, para dar-lhe a notícia:
- Laurent! Agora sou um sub 40!
Foi um ano em que me dediquei muito. Foi um ano que o Laurent se dedicou muito a mim. Antes de embarcar para a Maratona de Atenas, ele me chamou num canto da pista da PM, onde treinávamos então, e me disse para ir lá para aproveitar. O objetivo do ano já tinha sido atingido.
- O tempo que você fez na Maratona do Rio prova que você é atleta. Mas prova também que eu sou treinador.
E lembrou da fatídica corrida que, para mim, já era página virada. Memória arquivada.
- Depois do que aconteceu contigo naquela corrida, ouvi muita gente falando besteira. Falando que eu quase tinha te matado. Que tinha te forçado.
O que aconteceu naquele dia foi meramente uma fatalidade. Não foi sinusite. Já tive sinusites suficientes para saber que elas não são assintomáticas. Sinusite sem dor de cabeça? Sem produção infinita de meleca? Impossível. O diagnóstico foi somente a forma que a médica que me atendeu encontrou para me despachar sem ter que dizer "eu não sei o que você tem", um diagnóstico muito mais comum do que se imagina.
Não foi desidratação ou insolação. Não estava quente ou seco, eu me lembro de ter pego água durante a corrida. Não foi esforço em excesso. Eu estava preparado, descansado e acostumado a correr naquele ritmo. Certamente estava correndo no limite mas, de forma alguma, estava correndo acima dele.
Tampouco a culpa pode ser atribuída ao Laurent, como circulou no meio das corridas de rua de Brasília. Não foi culpa dele porque não foi culpa de ninguém. Simplesmente aconteceu.
Ironicamente, o incidente nos aproximou. Laurent e Marizete foram meus padrinhos do meu segundo casamento e, no convite, escrevi a seguinte mensagem:
"Laurent,
Desde que vim morar em Brasília, você esteve presente em todos os momentos marcantes que vivi, a ponto da minha história nesta cidade se confundir com a história de nossa amizade. Obrigado".

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