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Crônicas de bicicletas - Infância

Na primeira foto que tenho num veículo parecido com uma bicicleta, estou numa Motoreta, sorrindo. Pode-se descobrir cedo que felicidade e bicicletas são palavras de relacionamento intrínseco.


Desta época, pouco me recordo. As lembranças que tenho são indiretas, formadas a partir das histórias contadas por minha mãe, ou dos álbuns de fotografias esmaecidas pelo tempo. Não são lembranças fidedignas. São sujeitas à toda espécie de interpretações e impressões. Lembro-me, por exemplo, do dia que andei sem rodinhas pela primeira vez, numa rua perto de casa, numa bicicleta verde. O problema é que não consigo imaginar o que eu estaria fazendo andando de bicicleta neste lugar que, apesar de perto, teria exigido que meus pais me levassem. O máximo que posso fazer é deduzir, inferir. Neste caso, deduzo que estava com o Rudson, Pedro e Gláucia, os vizinhos da Rua Alpina, e que lá estávamos porque era o local asfaltado mais próximo de casa. Um outro problema que surge é que por mais que nas minhas memórias a bicicleta insista em aparecer na cor verde, as fotografias são contundentes em retratá-la como uma Monareta vermelha. O que é nítida é a alegria e o orgulho de ter conseguido andar sem rodinhas pela primeira vez. Provavelmente a mesma que Henrique sentiu quando, depois de vários dias em que eu o acompanhava segurando seu selim, ele resolveu tomar coragem e ensaiar pedaladas mais largas.

- Eu sei andar sem rodinhas! Eu sei andar sem rodinhas - era o que ele dizia ao chegar em casa, pulando sem parar, segundo me contou sua mãe após esta pequena grande conquista.


As bicicletas encolhem rápido quando se trata de crianças e a Monareta durou pouco. Ganhei de natal o maior objeto de desejo entre a garotada: uma Caloicross vermelha. Ela me acompanhou durante a maior parte da infância e foi nela que realmente aprendi a andar de bicicleta.


Tive sorte. Era uma outra época. Não só as ruas eram menos hostis, mas também os pais eram mais desprendidos em relação à segurança dos filhos. Ao menos na então pacata Nova Friburgo. Vagar por aí, sem destino, era de praxe. Percorria as ruas do bairro, sozinho ou com outras crianças com a desenvoltura que meus primos, no Rio de Janeiro, onde a liberdade já era muito mais cerceada, desciam para o play. Não havia cercas. Contanto que estivesse em casa nos horários determinados - almoço e jantar - meus pais faziam vista grossa se me aventurasse além das fronteiras do território que eles consideravam seguro: a rua de baixo, o "caminho que acabou".

Fui crescendo, os limites se ampliando. A partir da 5ª série, as aulas de educação física eram nas manhãs de sábado. Normalmente, papai me levava de carro mas, às vezes, batia uma vontade danada de ir de bicicleta. Os 5 quilômetros que separavam nossa casa do colégio de forma alguma eram vistos com qualquer tipo de reserva. Desconfio que muito pelo contrário, era até com certo alívio que meus pais me "deixavam" ir pedalando.

Infelizmente, o próximo passo foi um passo grande demais que acabou por determinar um afastamento temporário. Cismei que minha próxima bicicleta seria uma Caloi 10, uma "bicicleta de corrida". Uma bicicleta desproporcional estraga completamente a experiência de pedalar, como acabei descobrindo na prática.

Talvez meus pais não soubessem. Se minha memória não me trai, apesar de eles terem comprado uma Peugeot de segunda mão para cada, eles não tinham nem a empolgação nem um vasto conhecimento ciclístico. Acabei ganhando uma Sprint RT preta, linda. Um lindo e grande desastre.

Uma coisa que sempre foi reforçada em casa, ainda que de forma implícita, era que nossas ações geravam compromissos. Botou no prato, tem que comer. Pediu a bicicleta, tem que usar. Em uma única palavra: responsabilidade. A possibilidade de pedir para trocá-la nunca passou por minha cabeça. Tive que me adaptar.

E me adaptei. Grande demais, pô-la em movimento exigia uma boa dose de malabarismo, equilíbrio e criatividade. Como eu não alcançava o chão, para subir tinha ou que encostar a bicicleta no meio fio ou, na ausência de um degrau, incliná-la e dar dois impulsos simultâneo: um no sentido de anular a inclinação e colocá-la perpendicular ao chão e o outro, para frente, para dar o movimento inicial e ganhar equilíbrio. Mais complicado, impossível.

Sem outra alternativa, fui levando. Um dia, de férias, para espantar o tédio, resolvemos pegar as bicicletas e ir o mais longe que conseguíssemos. Cogitamos a possibilidade de ir a Mury mas, em verdade, creio que nos contentaríamos em voltar da Fábrica Ypu. Saímos do Cônego, Olaria, Country Clube, Paissandu e subimos o Viaduto. Na descida, um dos garotos, Klaus, emparelhou ao meu lado. Ele possuía o primeiro modelo que a Caloi lançou de Mountain Bike, nos anos 90. Não sei se os projetistas da Caloi 10 trocavam ideias com os projetistas da Mountain Bike. O fato é que o guidom reto da Mountain Bike encaixava perfeitamente no guidom curvo da Caloi 10. Pareciam feitos especialmente um para o outro.

O velocímetro analógico marcava 40 km/h e nós não conseguíamos mais nos desvencilhar. Quando percebi, estava no deitado no asfalto, todo ralado. Klaus tinha conseguido evitar a queda e me olhava, mais na frente, um tanto quanto preocupado. O acidente ocorreu em frente ao Mercado de Flores e um dos comerciantes veio em nosso auxílio. Felizmente, não havia carro atrás de nós. Poderíamos ter sido atropelados.

Os planos tiveram que ser interrompidos e tivemos que voltar pedalando por 5 doloridos quilômetros. Não me passou pela cabeça chamar meus pais. Imaginava que as probabilidades de um socorro desprovido de esporro eram praticamente nulas. Aí veio o banho. O primeiro banho após uma queda a gente não esquece. Arde até o arrepio da alma. Para criança, curativo é tudo band-aid. E taca de colar band-aid em cima das feridas que, a esta altura, já minam secreção e impedem qualquer tipo de aderência. Para criança, machucados só doem até a hora de brincar. E foi assim que mamãe me encontrou ao chegar em casa do trabalho, brincando na rua.

Gostaria de poder dizer que, apesar de tudo, tenho boas recordações da bike. Não é verdade. Se há algo de positivo que posso dizer em relação a ela trata-se apenas da constatação que toda bicicleta trás consigo um aprendizado e ela, em tudo aquilo que foi ruim, muito me ensinou. Me ensinou que uma bicicleta tem que ser adequada. Tem que ter um tamanho adequado. Tem que ser adequada ao terreno onde ela vai rodar. Girar nas ruas de paralelepípedos de Nova Friburgo com os pneus finos e o quadro rígido de aço carbono da Caloi 10 era torturante. Não é à toa que os profissionais volta e meia experimentam artifícios para tentar amenizar os efeitos dos temidos trechos de paralelepípedos na Paris-Roubaix. Mais do que tudo me ensinou que não se deve pular etapas. Para tudo há o seu tempo.

A Caloi 10 acabou abandonada. Não tenho a menor ideia do que dela foi feito. Muito tempo se passou até que eu me lembrasse que tinha uma bicicleta. Quando procurei por ela no quartinho, meu pai já a tinha passado adiante. Se ela ainda existisse, talvez a restaurasse para usá-la como uma bike urbana retrô. Como esta possibilidade não existe, bola para frente que daqui a pouco tem mais história.

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