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Crônicas de Bicicletas - Gislaine

Reflexos


Há alguns indícios de que a brincadeira começou a ganhar ares de seriedade. Um deles: o preço deixa de ser o fator preponderante da decisão de compra e a relação custo/beneficio passa a ser mais bem avaliada. Outro: a possibilidade de se manter bikes diferentes para propósitos diferentes já começa a parecer perfeitamente aceitável. A prova definitiva, porém, é obtida quando as bicicletas começam a  ganhar nomes. Foi nesse momento que entraram não apenas uma, mas duas bicicletas simultaneamente na minha vida. As irmãs, Giselda e Gislaine.

O Mota, amigo do trabalho, era Mountain Biker e costumava fazer suas trilhas no sábado de manhã. É da esposa dele a frase lapidar que melhor define o sentimento de rejeição que as bikes sofrem das mulheres (ou dos homens, caso trate-se de uma ciclista ao invés de um ciclista):

- Essa sua bicicleta foi a pior coisa que já aconteceu na minha vida.

Ele tinha uma speed que usava para girar durante a semana e, ao saber do meu interesse por um upgrade no ciclismo, perguntou se eu não queria pegá-la emprestada no fim de semana. Sabe aquela história do traficante que dá as primeiras doses de graça para garantir que o trouxa se torne viciado? Mais ou menos assim.

Aceitei a amostra grátis e fui pedalar pelo Lago Sul, aproveitando para subir a 8% usando um tênis de corrida no pedal de encaixe. Dizem que crack vicia já na primeira dose. Bike também. Tanto que estipulei um valor pelo qual eu compraria a speed que estava de olho na Centauro, uma GTR Series 3. Isso resolvia a parte esportiva da equação. Havia outra porém que continuava indefinida: a mobilidade urbana. Queria voltar a me locomover de bike mas, para tanto, havia um pré-requisito importantíssimo. Gato escaldado tem medo de água fria. Ela teria que custar pouco o suficiente para que eu me mantivesse disposto a deixá-la acorrentada nos postes, orelhões e bicicletários da cidade sem me importar (muito) caso fosse roubado pela terceira vez. Enquanto namorava Giselda, Gislaine começou a piscar para mim e no dia que trouxe Giselda para casa, Gislaine veio junto. Haja promiscuidade.

Gislaine é uma GT Nomad 2.0 classificada por seu fabricante como uma bicicleta urbana de conforto. Seu quadro de alumínio é um pouco mais rebaixado do que o usual, embora não o suficiente para caracterizá-lo como Step-Through, normalmente reservado às bikes femininas. Possui uma suspensão SR/Suntour MA3000 não ajustável com 50mm de curso, freios do tipo V-Brake, câmbio Shimano Altus de 21 marchas, um conjunto de coroas 28/38/48 na frente e uma relação 14-34 Mega-Range atrás que torna possível até subir paredes. O detalhe singelo fica por conta de uma pseudo suspensão acoplada no canote do selim que, até onde eu tenha notado, tem como único propósito justificar o nome da linha sem, no entanto, gerar maiores resultados efetivos. Seus componentes são tão simples que a necessidade de manutenção, a parte das revisões anuais que nem são seguidas tão à risca assim e de alguns pneus furados, foi nula. Sequer o câmbio, de uma linha considerada inferior da Shimano, precisou ser regulado nesses 5 anos de parceria.

Sabe aquela máxima que caro é tão somente aquilo que não usamos? Por qualquer lado que se olhe, ambas foram uma pechincha. O único arrependimento que guardo em relação a Giselda foi tê-la vendido para fazer um upgrade para uma bike de carbono, mais um indício da importância do ciclismo na vida do cara. Hoje acho que poderia ter optado por transformá-la na minha bicicleta do dia a dia. Gisleine, por outro lado, valeu cada centavo investido nela. A bateria do Cateye acabou há anos, levando consigo qualquer possibilidade de uma estimativa realista de quilometragem. Chuto algo entre 5 e 10.000 km. Considerando que Gislaine é uma bike estritamente urbana, cujo raio de atuação está limitado entre as quadras 16 Sul e 16 Norte, não há como negar que trata-se de um número impressionante.

Desde sempre, o automóvel desempenhou um papel protagonista na minha vida. Esse papel era, de certa forma, parte de uma cultura familiar que foi se forjando desde que meu avô serviu por dois anos pela Marinha nos Estados Unidos, absorvendo tecnologia para ser aplicada na Fábrica de Torpedos da Marinha. Quando chegou a hora de voltar, lhe foi facultada a possibilidade de trazer os bens que foram adquiridos durante sua estadia no exterior e ele, obviamente, exerceu esta opção, trazendo de navio diversos bens de consumo disponíveis na próspera América pós-guerra, porém inacessíveis à população brasileira. Máquina de lavar roupas. Uma passadeira elétrica que parecia necessitar de uma subestação exclusiva para si, tamanho era seu consumo de energia elétrica, mas que funcionava perfeitamente até bem pouco tempo atrás, quando mamãe resolveu desapegar e mandá-la para reciclagem. Um aparelho de televisão que serviu de enfeite até Assis Chateubriand botar a TV Tupi para transmitir seu sinal no Rio de Janeiro.

Interessante notar que, passados 2/3 de século, a situação não se modificou tanto assim. O acesso aos bens de consumo disponíveis à população dos países desenvolvidos sofre tantos entraves que o pouco que por aqui chega ou é ruim ou é caro, quando não é ambos.

Vovô trouxe dois automóveis. Um para si e outro para o tio Alberto que o recusou por uma questão de princípios: quem tinha direito ao carro era vovô, não ele. Em tempos em que a ética se mostra mercadoria escassa, tamanho apego à retidão é digno de admiração. Tio Alberto era nada menos que Alberto Sá Souza de Britto Pereira, Diretor Geral da Imprensa Nacional de 1944 a 1946 e de 1951 a 1979. Com exceção de Dutra, ocupou o cargo em todos os governos, civis e militares, de Getúlio a Geisel, quando a Imprensa Nacional ainda ficava do Rio de Janeiro e depois que ela acompanhou a mudança da capital federal e se instalou em Brasília. O prédio que atualmente abriga o órgão foi batizado de Palácio Alberto de Britto Pereira em sua homenagem.

Vovô vendeu um dos carros e guardou para si o Mercury, presente em grande parte das histórias de infância que mamãe transmitiu. Como aquela em que vovó, ao manobrá-lo, derrubou um muro sem causar nem um arranhão ao automóvel, tamanha era sua resistência. Pudera. O carro era praticamente um tanque. Ou aquela em que vovô trouxe a família para passar férias em Brasília, no ano de sua fundação, a convite de Tio Alberto, mas voltou dirigindo no mesmo dia. Ferrenho opositor de JK e da mudança da capital para o Planalto Central, ele se recusava a dormir na cidade por uma noite que fosse.



Desde o Mercury, excetuando o período em que o processo de criar-dificuldade-para-vender-facilidade vigente no estado do Rio de Janeiro estava em curso quando eu completei a maioridade e estava tirando a carteira de motorista, sempre havia um carro à minha disposição. Fosse para ir ao colégio, viajar nas férias e feriados ou passear nos fins de semana, o carro era o meio de transporte e meus pais os motoristas. Depois que minha carteira nasceu - o processo levou mais de 9 meses - eu mesmo passei a desempenhar este papel. E se meu avô foi privilegiado por ter tido a possibilidade de ter um automóvel quando sua presença ainda era tão incipiente no Brasil, este privilégio foi transcendendo as gerações seguintes, quando o carro se tornou o principal meio de transporte  das famílias de classe média brasileira. Apesar disso, considero que privilegiado mesmo me tornei quando passei a morar a uma distância caminhável do trabalho e pude me dar ao luxo de deixá-lo de lado.

Hoje, meu questionamento não é se devo trocar de carro, um Peugeot 206 2001 com pouco mais de 80.000 km rodados, por um 0 km. Meu questionamento é se devo continuar mantendo um carro apesar de utilizá-lo tão esporadicamente. Não me lembro da última vez que o tirei da vaga debaixo do bloco. É um espanto que uma cidade que foi concebida para ter no automóvel o símbolo máximo de igualdade tenha tantos prédios sem garagem mas, como já escrevi anteriormente, a prática mostrou que muitas das ideias que pareciam geniais na prancheta de Le Corbusier e seus discípulos não eram nada práticas na prática. Tirar o carro da vaga, pagar estacionamento e estar sujeito a ter que ficar rodando na quadra, em busca de um lugar para largá-lo na volta acaba dando preguiça. Vamos de bike mesmo.

Não foi uma mudança abrupta. Começou ainda no Rio de Janeiro. O trânsito, à época, ainda não era tão ruim mas já era suficientemente ruim para transformar o ato de dirigir numa experiência cotidiana bastante desagradável. As vagas públicas já eram suficientemente escassas para tornar os estacionamentos privados a única opção possível. Uma opção cara principalmente para quem era Técnico de Processamento de Dados da Prefeitura e ganhava uma merreca. Continuou em Águas Claras com a EPTG eternamente engarrafada e uma alternativa, um metrô que, bem ou mal, atendia minhas necessidades de deslocamento casa-trabalho-casa. Se completou no Plano Piloto.

Gislaine é, ao mesmo tempo, indutora e fruto desta mudança. Causa e consequência. Entre as quadras 16 Sul e 16 Norte, ela é o meio de transporte usual. Se a distância for maior mas houver uma estação de metrô no meio, também. Henrique foi para a escola diariamente durante anos na sua garupa até crescer e ceder seu lugar para Gabriel, que o ocupa de forma cativa até atingir o inevitável momento em que os filhos deixam de ser crianças e, tal como Henrique, tal como Pedro, passe a ir pedalando sua própria bike para o colégio, como aliás já vem ensaiando de vez em quando. A bike está tão associada à minha imagem que, outro dia, uma professora me reconheceu no pátio do colégio:

- Ah! Você é o pai da bicicleta.

Sim, sou eu. O pai da bicicleta, da família das bicicletas.

Aos poucos, a ideia que carro é uma necessidade está se desfazendo. Um colega de trabalho resolveu tentar a vida em Brasília sem ele. Deu certo. Bicicleta para o trabalho, táxi para os deslocamentos mais longos ou para ir ao supermercado. Abre-se mão de um certo conforto mas, por outro lado, abre-se mão de ficar preso no engarrafamento. Abre-se mão de ficar refém do cartel dos postos de gasolina. Chega-se mais rápido de carro? Há controvérsias. Levando-se em conta o tempo gasto exclusivamente nos deslocamentos, provavelmente sim. Mas se somarmos o tempo total dedicado a ele? No livro Apocalipse Motorizado, cogita-se que:
O americano típico consagra mais de 1.600 horas por ano ao seu automóvel: sentado dentro dele, andando ou parado, trabalhando para pagá-lo e para pagar a gasolina, os pneus, os pedágios, o seguro, as multas e os impostos para as estradas federais e para os estacionamentos públicos. Consagra a ele quatro horas por dia, nas quais se serve dele, se ocupa dele ou trabalha para ele (...). Essas 1.600 horas lhe servem para fazer 10.000 km de caminho, ou seja, 6 km em uma hora.

 Se esses dados estiverem corretos e forem aplicáveis à nossa realidade, 6 km/h é a metade da velocidade de uma bicicleta.

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